Muitas pessoas têm alertado para os perigos ocultos no projeto de lei em tramitação no Congresso chamado de Marco Civil da Internet (Projeto de Lei nº 2.126 de 2011) — que está na iminência de ser votado pela Câmara dos Deputados —, especialmente no que diz respeito às ameaças reais de cerceamento da liberdade de expressão.

No entanto, uma questão não menos controversa e bastante perigosa para o futuro da internet é a chamada ‘neutralidade de rede’, ou internet aberta. O próprio relator do projeto, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), afirma que a neutralidade de rede é “o coração do Projeto de Lei”.

Diante disso, este texto tem por objetivo (i) apresentar de forma simplificada os fenômenos concretos decorrentes da ideia de neutralidade de rede, (ii) expor os efeitos nocivos decorrentes de sua implementação compulsória pelo Estado e (iii) tecer comentários acerca da proposta do Marco Civil da Internet.

Antes de explorar as redes de dados em si, permita-me recorrer a um exemplo que nos ajudará mais adiante. Suponha uma autoestrada puramente privada, sem qualquer tipo de regulação estatal ou barreira à entrada de novos concorrentes. São três faixas em cada sentido, ligando duas grandes cidades. O proprietário dessa estrada pode extrair lucros de diversas formas: cobrando pedágio, alugando ou vendendo terrenos marginais, permitindo placas de publicidade. Qualquer que seja a forma de obtenção de receitas, quanto mais veículos trafegarem por sua rodovia, maior será o fluxo de caixa gerado por cada uma das alternativas acima. Como se trata de uma autoestrada, a velocidade de tráfego é importante para os consumidores.

O proprietário da estrada pode adotar diferentes soluções de gestão de tráfego, tais como: qualquer veículo pode trafegar por qualquer faixa; caminhões só podem trafegar nas duas faixas à direita; cobrança diferenciada de pedágio conforme o veículo e o horário. Pode inclusive não cobrar nada de nenhum veículo, e não praticar qualquer política de gestão de tráfego.

Eventualmente, uma transportadora de grande porte, que utilizasse o trecho com frequência, poderia celebrar um contrato diferenciado com a autoestrada. Seus caminhões poderiam trafegar por qualquer faixa, a qualquer hora do dia, com pedágio livre, mediante, por exemplo, o pagamento de um determinado valor mensal. Carros de passeio poderiam ter passagem livre pelo pedágio, desde que instalassem sensores e o pagamento fosse feito por meio de fatura mensal (como já acontece em muitas concessões de estradas no Brasil).

Enfim, o fato de a estrada ser uma propriedade privada permite que os gestores tenham liberdade para gerenciá-la da melhor forma possível.

O arranjo descrito no exemplo acima não aparenta problemas. O proprietário voltado para o lucro está interessado em prover mais capacidade de tráfego, e não menos. Como os usuários financiam direta ou indiretamente o serviço oferecido, é natural que os lucros sejam reinvestidos para a conservação do pavimento e para a expansão da capacidade de tráfego, não havendo, portanto, conflito entre os consumidores e o provedor da infraestrutura. Contratos diferenciados podem ser celebrados com usuários diferenciados, algo muito corriqueiro em qualquer ramo de negócio. Mais ainda: ao contrário do que se pode imaginar, a empresa em questão não está livre para cobrar preços absolutamente impeditivos e “fazer o que ela quiser”. O fato de não haver qualquer restrição à entrada de novos concorrentes (outras rodovias, trens, dutos etc.) pressiona a mesma a fornecer serviços de qualidade e a preços competitivos (se é que será cobrado algum valor pelo tráfego).

Os ensinamentos fornecidos pela Escola Austríaca acerca do processo de mercado mostram que não há melhor controle do “poder de mercado” e das “práticas anticompetitivas” do que a livre concorrência.

As redes de dados — que num passado não muito distante prestavam outros serviços, como telefonia fixa, celular e TV por assinatura — não se diferenciam em essência do exemplo descrito acima, por mais complexo que seja o aparato técnico presente nas telecomunicações. Elas são as rodovias. Os provedores de conteúdo — ou geradores de tráfego — são websites, aplicativos,  data-centers, serviços de video streaming, voz sobre IP etc. Podem ser comparados com os veículos que trafegam pelas estradas.

Por fim, temos os consumidores finais, presentes em qualquer setor da economia. Os indivíduos que trafegam pelas rodovias e que consomem os produtos que circularam por elas são análogos aos que leem notícias nos jornais eletrônicos, mandam e recebem e-mails, assistem a vídeos no celular ou em casa.

Com esse esquema em mente, podemos voltar para a questão da neutralidade de rede, ou, como preferem outros, da internet aberta. Pode-se definir uma rede neutra como aquela em que não há qualquer discriminação de tráfego com base em aspectos comerciais, técnicos ou de conteúdo. Em outras palavras, uma situação em que nenhum bit deve ter prioridade sobre outro. Em termos de engenharia este é um caso muito particular de arquitetura e gestão de rede.

Os defensores da imposição da neutralidade de rede por meio de legislação estatal argumentam que esse é o único arranjo que permite a livre circulação de informações e a efetiva liberdade de escolha por parte dos usuários finais. Ainda, sustentam que caso as empresas de infraestrutura operem sem qualquer tipo de restrição, estas usarão todo seu “poder de mercado” para escolher qual tipo de conteúdo pode trafegar, para privilegiar os produtores de conteúdo ligados aos seus grupos econômicos e para dificultar a operação de pequenos geradores de tráfego.

Num artigo recente publicado na Folha de São Paulo, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) apresenta sua defesa para a neutralidade de rede. Segundo Molon, as empresas provedoras forçariam os consumidores a ter um contrato para e-mails, outro para vídeos, outro para redes sociais e assim por diante, cobrando preços cada vez mais caros, claro.

Evidentemente que sob um regime de livre competição, de respeito à propriedade privada e de liberdade de gestão empresarial esses temores não passariam de retórica política. Quando os consumidores contratam um serviço de banda larga, eles querem ter acesso à internet como um todo, e não a aplicações específicas, escolhidas pelas empresas. Caso a prestadora com a qual está vinculado passe a praticar qualquer tipo de compartimentalização, restrição, boicote ou censura, rapidamente isso seria percebido, o que geraria ampla insatisfação entre os clientes. A própria tendência a consumir os serviços de telecomunicações em formato de “combos” mostra como o mercado tem caminhado no sentido de simplificar e agrupar os contratos com os consumidores, ou seja, na direção contrária à apontada pelo deputado no artigo.

Reiterando, a não existência de qualquer tipo de barreira governamental para a construção e gestão de novas redes é crucial para a mitigação dos comportamentos contrários aos desejos dos consumidores. Se existem indícios (os quais eu desconheço) do cenário tenebroso descrito pelo deputado, sua ocorrência se deve às restrições à concorrência e ao nada atrativo ambiente de negócios existente no Brasil.

Por outro lado, a imposição governamental da rede neutra implicaria uma série de consequências, a maioria delas não premeditada ou não esclarecida pelos proponentes. E seria assim porque as propostas de neutralidade padecem de uma espécie de “falácia do nirvana”: a ideia é definida em termos utópicos, algo como “todos os bits devem trafegar livremente por todas as redes, sem qualquer tipo de gerenciamento de tráfego”. Os desvios entre a realidade — sempre imperfeita — e o nirvana cibernético sonhado pelos partidários da internet aberta serão usados como justificativa para as devidas “correções das falhas”. Qualquer semelhança com a enganosa ideia de ‘concorrência perfeita’ não é mera coincidência.


Por: Daniel Marchi
Original: Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil
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